quinta-feira, 8 de abril de 2010

Saravá, Arouca! Saravá, Joaquim!

Guilherme Franco Netto e Regina Abreu [coords.]

Discurso de lançamento do livro

Agradecimentos:
Ministro José Gomes Temporão
Paulo Gadelha – Fiocruz
Antonio Ivo – Escola Nacional de Saúde Sergio Arouca
Malvina Tuttman - Unirio

Não existe memória criada espontaneamente. Produzir a memória requer um ato de vontade, uma decisão política. Selecionamos a memória que queremos legar às futuras gerações. O trabalho de construção da memória é uma atividade propositiva e plena de conseqüências.
Como assinalou Hannah Arendt, o tempo da modernidade é um tempo presentificado e veloz. Vivemos um eterno presente. Perdemos as conexões que nos ligam ao passado e inspiram novas utopias para o futuro.
O perigo da amnésia coletiva nos espreita.
Precisamos mais do que nunca narrar, contar, retirar do limbo do esquecimento algumas histórias extraordinárias que muito nos ensinam para a ação no tempo presente.

Nós, do Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro onde este trabalho foi produzido acreditamos na importância de tirar do esquecimento trajetórias de personagens, cujas exemplaridades podem nos conduzir a territórios mais amplos e mais densos e que expressem movimentos sociais e construções no coletivo. É por meio da ativação da memória destes personagens que de forma propositiva reconectamos os elos de temporalidades perdidas atualizando no presente, o que ontem era apenas uma esperança ou um sonho de futuro e que hoje é aquilo que chamamos de realidade. De certo modo, estes personagens nos fizeram. Armaram a cena na qual hoje atuamos e tecemos nossas vidas e nossos projetos.
Assim, ao afirmar o trabalho com histórias de vida costurando a lembrança de trajetórias emblemáticas não estamos propondo uma atitude nostálgica de chorar um passado que não mais retorna. Estamos sim assumindo uma atitude mnemônica ativa, que dialoga com o presente articulando as temporalidades ao invés de segmentá-las.
Trabalhar com a memória é para nós uma militância ativa, uma atitude política plena de conseqüências no contemporâneo.
Lembrar é resistir. Lembrar é re-existir.
Re-fazer, re-criar, re-pensar.
Refletir.
Atitudes revolucionárias no contemporâneo.

Mas por que Sergio Arouca?
Escolhemos abordar a trajetória de Sergio Arouca por tratar-se de trajetória socialmente significativa, cujas ações se revestem de atualidade, provocam o pensamento e, sobretudo, expressam um movimento coletivo.
Sua trajetória relaciona-se diretamente com as bases filosóficas, teóricas e políticas da moderna reforma sanitária brasileira: processo de luta da sociedade brasileira pelos direitos fundamentais à saúde, iniciado em meados da década de 70 a partir da construção de espaços de resistência democrática contra o regime militar e que veio se consolidar no texto da Constituição Federal de 88, quando ficou estabelecido que saúde é um direito de cidadania e um dever do Estado ou, para usar suas palavras:
“Saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

Escolhemos Sergio Arouca pelo significado profundo de sua militância. Arouca era um militante no sentido pleno, acreditando na ação transformadora dos homens em busca da realização de sonhos e projetos futuros. Seu ativismo político refeletiu as ações possíveis em contextos políticos marcados pelo autoritarismo. Teve papel destacado na ampliação de formas de formas de atendimento à população brasileira. O pensamento e a ação política de Sérgio Arouca são determinantes no ao processo de instituição e estruturação do Sistema Único de Saúde - SUS, nos anos 90, que por muitos é considerado a maior conquista e obra das políticas públicas sociais do Brasil moderno, tendo como base a universalidade, a descentralização e a eqüidade.

Sua produção e atividade acadêmica, notadamente a obtenção do título de doutor com a tese “O dilema preventivista” cujos fundamentos são ainda hoje referências no campo da saúde, seguido do período da construção do projeto anti-hegemônico dos militantes da saúde, expresso por sua atuação no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, sua assunção à Presidência da Fundação Oswaldo Cruz e à Presidência da VIII Conferência Nacional de Saúde, posteriormente seguido de dois mandatos legislativos na Câmara Federal. Adicionalmente, foi secretário de Estado de Saúde do Governo do Rio de Janeiro, foi Secretário de Saúde do Município do Rio de Janeiro e Secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde. Neste último cargo, implantou as bases de um modelo alternativo de gestão institucional que ficou conhecido como “gestão participativa”, abrindo importante caminho para a reestruturação de diferentes setores do Estado e da sociedade civil. O modelo de “gestão participativa” preconizado por Arouca que propõe a participação ativa dos usuários e dos funcionários no fórum das reflexões e decisões políticas das instituições públicas vem sendo uma referência no campo da saúde. Hoje, este modelo vem alimentando a prática de diversas agências e programas de saúde pública ocasionando uma mudança importante no sentido da democratização das relações sociais e do campo decisório. De tal modo, o modelo de “gestão participativa” tornou-se importante no processo de reforma do Estado brasileiro que, outros Ministérios e outras áreas públicas vem se apropriando deste formato mais inclusivo de gestão onde as relações tendem para a horizontalidade quebrando antigos vícios herdados ainda dos períodos autoritários.

No campo da militância partidária, Sergio Arouca pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro - PCB e exerceu a Vice-Presidência do Diretório Nacional do Partido Popular Socialista - PPS e a Presidência do Diretório Estadual do PPS no Estado do Rio de Janeiro. A vida pública de Sergio Arouca representou o manifesto individual de um projeto coletivo que encerra no campo da saúde, a luta por um Estado que atenda à prática da inclusão social e da democracia participativa e plural. Sua trajetória mescla-se intimamente com a luta pelas liberdades democráticas e com o firme combate a todas as formas de autoritarismo.

O livro que hoje aqui lançamos disponibiliza para pesquisadores e interessados o conjunto de um acervo e de um material de referência para a pesquisa sobre temas relevantes com relação a fatos recentes sobre a história das políticas de saúde pública no Brasil possibilitando a difusão dos debates em torno da universalização da saúde pública no Brasil.

Foram cerca de 70 depoimentos de pessoas que conviveram com Sergio Arouca nas mais diferentes áreas. Este trabalho envolveu uma equipe de pesquisadores e eu gostaria de destacar o trabalho de Helena Rego Monteiro, Fabrício Pereira da Silva, Sergio Lamarão, Pedro Sol, Carol Vivas, Marta Joyce, Carlos Augusto Ferreira Figueira. Gostaria de destacar o apoio da Reitora.

Ministério da Saúde, UNESCO, Fiocruz...

Os depoimentos destacam como característica marcante de Sergio Arouca seu espírito agregador e sua forte liderança no contexto de um movimento que se tornou decisivo para o combate à ditadura nos anos 70 e para a implantação de um ideário democrático de gestão e de inclusão social para o campo da saúde nos anos 80 e 90.

Sua palavra de ordem era trabalhar com o coletivo e incorporar o novo, a mudança, a justiça social. Ele gostava de agregar pessoas e de colocá-las em relação umas com as outras. Desejava incluir sempre as diferenças para criar uma atmosfera heterogênea nos espaços em que circulava.

Procuramos trazer para as futuras gerações o legado de Sergio Arouca. Para alguns ficou o companheirismo, o afeto. Outros lembrarão de Arouca pela atuação decisiva nas assembléias, nos debates políticos, a extrema capacidade argumentativa. Outros ainda guardarão na memória sua habilidade em congregar, atrair para si, formar coletivos.

Estamos certamente falando de legados no plural. Polifônicos. Como ele.
Sergio Arouca é um personagem singular que abriu mundos.
A conquista das liberdades democráticas, processo vivenciado plenamente por Arouca e toda a sua geração, aliado à conquista de um serviço de saúde mais ágil e mais inclusivo em âmbito nacional foram de fato conseqüências dos movimentos sociais protagonizados por Arouca e toda uma geração de militantes que se notabilizou por centrar no campo da saúde uma extensa pauta de reivindicações e demandas.

Pode-se dizer que Arouca viu partes de seus sonhos se realizarem presenciando e tomando parte ativa em uma sucessão de movimentos bem sucedidos como o da anistia, das Diretas-Já, da Constituinte, da retomada plena da democracia com a pluralidade partidária, da reintegração dos cassados na Fiocruz – emblema de um necessário processo de reparação aos injustiçados da ditadura militar –, de ampliação da voz e do voto na 12º Conferência Nacional de Saúde evidenciando e conferindo visibilidade à condição de ‘sujeitos’ dos usuários das instituições e serviços hospitalares, condição sistematicamente negada pelos poderes médicos e pelos setores de administração pública.
A política o tomou inteiramente. A política no sentido pleno da utopia, do sonhar com outras possibilidades coletivas de existência...

Talvez este tenha sido um de seus grandes legados: esta atitude de desprendimento pessoal em busca da criação de utopias de espaços coletivos de existências plurais e inclusivas.Fiocruz, instituição que viu renascer seu brilho, sua visibilidade acadêmica e sua pujança intelectual a partir de sua gestão como presidente. Lá Arouca revelou-se mais do que o médico ou o político, o administrador público que soube propor um modelo de gestão que provou enorme eficácia para os anos que se seguiram.

Ele foi feliz em sua gestão à frente da Fiocruz porque soube perceber e valorizar aspectos muito simples, porém extremamente necessários para o sucesso administrativo, fez questão de incluir a mais ampla participação, dos pesquisadores mais graduados aos motoristas e empregados do palácio. Hoje, alguns relatam com humor as horas e horas passadas em longas assembléias que reuniam as mais diferentes posições numa instituição com muitas peculiaridades, do pesquisador emérito e internacionalmente reconhecido até o mais simples jardineiro. Dos debates sobre propostas salariais até a construção do próprio organograma da Fundação, ao que parece tudo passou a ser conversado até a exaustão seguindo um modelo que ia sendo inventadodepois passou a ser conhecido como “gestão participativa”.

Como assinalou Crescêncio Antunes, ex-Secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, “a imagem do Arouca era a própria imagem da ativação da cidadania. Isso quem conviveu com o Arouca, quem acompanhou de perto a sua trajetória como médico sanitarista, como político, sabia quanto o Arouca acreditava do fundo da sua alma de que nada se construía de maneira melhor se não fosse com a mais ampla participação possível. E como ele acreditava na sociedade, na comunidade, na cidadania, no exercício dela na construção das práticas de saúde.

Tanto que é a partir de Sérgio Arouca que surgiu na 8º Conferência Nacional de Saúde, pela primeira vez na história do Brasil, uma Conferência de Saúde realizada com ampla participação da sociedade brasileira. É a partir destas características e deste perfil que tinha o Sérgio Arouca, da autenticidade da sua crença na participação da cidadania como exercício maior e melhor da democracia.

Sergio Arouca hoje está ao lado dos símbolos maiores do campo da saúde no Brasil, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, devido a sua ação no fortalecimento das atividades tradicionais da Fiocruz, por seu incentivo e liderança com relação à construção das políticas de saúde no país, e por sua contribuição para os povos de outros países do continente.

A Fiocruz edificou uma estátua em sua homenagem, onde Arouca está uma das mãos estendida para o alto chamando cada um de nós a participar do movimento da saúde coletiva, a se agregar, a se tornar mais um na crença, na profissão de fé, na luta por um mundo mais digno e por melhores condições de vida e de saúde para a população brasileira. Gesto que, expressa sua abertura em sempre incorporar sugestões, idéias, novas amizades e novos companheiros. Gesto que expressa a atitude de Arouca quando presidente da Fiocruz de convocar as primeiras eleições da entidade, expressando seu rompimento com a política assistencialista anterior. Gesto inspirado numa foto de Arouca diante de um carro de som numa assembléia da Asfoc. A estátua não deixa de ser simpática, Arouca está assim com um ar bonachão e cristalizando uma atitude que, sem dúvida, é das que mais necessitamos para este novo milênio que se inicia, a atitude que agrega, que convida, que inclui.

A atitude que não quer se fazer sozinha, que sabe que “sonho que se sonha só é só um sonho, mas que sonho que se sonha junto é realidade”. Frase tantas vezes repetida por tantos de sua geração, tantos que como ele acreditaram e efetivamente tiveram a felicidade de saber mudar e deixar para futuras gerações um país ao menos com mais democracia e menos arbítrio.
O legado de Sergio Arouca pode ser sintetizado na crença na utopia, na coragem em ousar novos caminhos na política e na vida.

Como assinalou Roberto Freire, companheiro de militância, “Arouca representou aquilo que de melhor tínhamos principalmente nos momentos difíceis, os momentos de revisão, de mudança, na tentativa de continuarmos vivos quando muitos de nossos sonhos foram se afundando. Ele podia representar todo esse processo de revisão por sua arraigada concepção de vida: tolerante, democrática, aberta à diferença, com capacidade para entender e, mais do que isso, para construir junto. Ele nos legou a reforma sanitária, a criação do SUS, enfim, o capitulo da área de saúde na nossa Constituição. Ele foi o maior líder que o partido teve nessa área e por isso mesmo engajou-se como candidato a vice-presidente na nossa chapa. Ele foi um comunista diferente porque antenado com o tempo e com o tempo do futuro, e não com o passado, procurando superar muitos de nossos problemas. Arouca não é apenas uma saudade. É uma lacuna que hoje, nos tempos em que estamos vivendo, mais que a saudade, faz tremenda falta para nos ajudar a enfrentar a realidade que aí está. Não tenho dúvidas que Arouca saberia, junto com seus camaradas, dizer um pouco do que significa ser a esquerda, permanecer com o sonho apesar de todos os nossos problemas atuais. Por tudo isso, eu diria que a saudade dos companheiros do PCB, do PPS, dos colegas, dos amigos da Fiocruz é a saudade do povo brasileiro.

”Por tudo isso, dedicamos este livro a todos aqueles que, a exemplo de Sergio Arouca, acreditaram na construcão de um projeto de saude coletiva para o país;
E muito especialmente ao Dr Joaquim Ribeiro Filho, médico cirurgião e professor titular do Hospital Clementino Fraga Filho da UFRJ por sua incansável dedicação à causa dos transplantes no Brasil.
E desejamos a todos boa leitura!
Saravá Arouca!

Regina Abreu

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