terça-feira, 12 de agosto de 2008

Transplantes : jogando para a arquibancada enquanto vidas se perdem

Fila de espera
Transplantes: jogando para a arquibancada enquanto vidas se perdem

Publicada em 01/08/2008 às 19h22m O Globo online
Heliete Vaitsman, jornalista especializada em saúde


Entre os muitos recordes negativos do Estado do Rio de Janeiro está a captação de órgãos, que há uma década impede que os transplantes funcionem direito aqui, enquanto melhoram cada vez mais em outros pontos do país, como São Paulo e Rio Grande do Sul. Mas nada mudará se os principais responsáveis continuarem a jogar para a arquibancada, como indica o espetáculo dos últimos dias, que mostrou respeitados cirurgiões envolvidos em questões burocráticas que não deveriam ser suas, ameaçados de prisão ou até sendo presos (com direito aos "homens de preto" emitindo julgamentos que não lhes caberiam numa democracia).

" A Secretaria de Saúde anuncia a intenção de reorganizar a fila. Convoca para exames de sangue mais de mil doentes, à espera de um fígado na fila única. Isso contradiz o critério atual para a cirurgia "

A Secretaria estadual de Saúde anuncia a intenção de "reorganizar" a fila para "elaborar novo ranking". Convoca mais de mil pessoas para exames de sangue, pessoas doentes, à espera de um fígado na fila única...Como assim? Isso contradiz o critério atual para a cirurgia, que é de gravidade do paciente, baseado no índice Meld, e que, feito a partir de exames de sangue, muda de maneira permanente. Quem está em vigésimo lugar hoje pode fazer novos exames, daqui a um mês, e saltar para o primeiro. Para que, então, a pirotecnia da convocação? Seria mais útil esclarecer ao público leigo o que é a fila única - sim, única, a despeito do local onde o paciente seja operado - administrada pelo Estado.

Não seria melhor o governador ter se abstido, igualmente, de anunciar que vai fazer um esforço na agilidade da doação? Quer dizer que ele não sabia que o sistema de captação é ineficiente há muitos anos? E, segundo os médicos da área, a captação de órgãos não exige alta complexidade (ao contrário da cirurgia): a simples colocação de acadêmicos de medicina para realizá-la em hospitais gerais é eficaz e salva vidas. Bem, também é preciso telefones que funcionem, duas ambulâncias e isopor para guardar os órgãos...

" Levar os transplantes para um hospital geral, em que a equipe não tem a mesma experiência, seria um serviço para nós, cidadãos? "

Outra questão a ser resolvida é a quase constante lotação da UTI no principal centro de transplantes fluminense, o Hospital do Fundão. Seria preciso determinar - e não só para o caso dos transplantes, obviamente - que razões levam a esta situação. Levar os transplantes para um hospital geral, em que a equipe não tem a mesma experiência, seria um serviço para nós, cidadãos?

A área dos transplantes é tão incompreendida que muitos tomadores de decisões e legisladores brasileiros ainda a consideram experimental: assim, a lei 9.656/98 (que regula a saúde suplementar no Brasil) não tornou a cobertura para transplante hepático e renal obrigatória para os seguros, algo na contra-mão do desenvolvimento científico. O transplante de fígado deixou de ser experimental em 1983 e passou a ser indicado amplamente em 1993 no mundo desenvolvido. Aliás, não foi só o transplante que evoluiu. Na última década aconteceram avanços cirúrgicos que adiam a necessidade de transplante, como uma válvula (TIPS) que, colocada no fígado, impede hemorragias fatais.

" Na primeira vez que entrevistei Joaquim Ribeiro Filho, em 1994, ele defendia a adoção pelo sistema público de novas técnicas de tratamento hepático, que reduzissem o sofrimento dos pacientes e os custos "

A evolução na área é tamanha que a cirurgia de transplante hepático que antes demorava 12, 14 horas, hoje demora menos de seis. No Hospital do Fundão, as taxas de mortalidade, que eram de 20 e 25%, despencaram, e a expectativa de sobrevida em um ano, que se aproximava de 65%, aumentou. A expertise das equipes é fundamental nisso tudo. Na primeira vez que entrevistei Joaquim Ribeiro Filho, em 1994, ele, reconhecido internacionalmente, já coordenador da equipe do Fundão, autor de centenas de cirurgias, inclusive na França, defendia a adoção pelo sistema público de novas técnicas de tratamento hepático, que reduzissem o sofrimento dos pacientes e os custos. O transplante, dizia ele, devia ser a última escala de um processo que se poderia evitar com mais prevenção (mal comparando, algo similar a reduzir os custos do transplante de rim tratando preventivamente a hipertensão arterial, que produz falência renal).

" As filas têm que ser ágeis, diz o consenso. E se um transplante de rim pode ser adiado, pois o paciente espera em hemodiálise, o de fígado não pode "

No caso dos transplantes, destaca-se no Brasil o desconhecimento sobre os custos diretos da cirurgia e a relação entre gastos e retorno em vida útil do paciente. Onde está o levantamento dos custos, inclusive históricos? O Brasil tem profissionais aptos a contribuir para a melhoria do sistema. Essa não é uma função para o cirurgião nem para o clínico, cujo foco é outro. É uma função específica, em todos os centros mundiais exercida por gente indicada por critérios técnicos, não políticos. Porque, como me escreveu uma oncologista da UFRJ, ex-emergencista, não há como "os médicos não fazerem besteiras administrativas na correria para salvar vidas".

As filas têm que ser ágeis, diz o consenso. E se um transplante de rim pode ser adiado, pois o paciente espera em hemodiálise, o de fígado não pode.

http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2008/08/01/transplantes_jogando_para_arquibancada_enquanto_vidas_se_perdem-547529277.asp

Nenhum comentário: