sábado, 9 de agosto de 2008

A questão da fila - com Dr. José Camargo

Idéia de compra de órgão é fantasiosa, diz especialista em transplantes
Publicada em 31/07/2008 às 21h29m
Patrícia Sá Rêgo - O Globo Online


RIO - Um paciente cujo estado de saúde era considerado gravíssimo pelos médicos foi transportado de Brasília para Porto Alegre para receber um pulmão de um doador. Outros 50 estavam na lista de espera para receber o órgão e foram preteridos pelo brasiliense, que era médico. O que, em princípio, por falta de informação, poderia parecer um esquema de "fura-fila" - nome dado à operação que levou à prisão, na quarta-feira, o médico Joaquim Ribeiro Filho, ex-coordenador do programa Rio Transplante e ex-chefe da equipe de transplantes de fígado do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (Fundão), acusado de participar de um suposto esquema de fraudes na fila de transplantes -, nada mais era do que um procedimento natural.

"Muita gente vai morrer, porque esse tipo de denúncia tem um efeito devastador na consciência das pessoas. "

Para que tudo ficasse claro e os envolvidos entendessem que a fila de transplantas não funciona como uma fila de cinema ou supermercado, o médico responsável pela cirurgia expôs os motivos aos pacientes. Dos 50 candidatos, apenas dez possuíam o mesmo tipo sanguíneo do doador. Restavam dez. Seis foram eliminados, porque precisavam de transplante duplo (dos dois pulmões). Outros três precisavam do pulmão direito, justamente o que havia sido atingido pelo tiro que matou o doador. Em Porto Alegre, restava apenas um candidato, cuja estatura era maior do que a do doador. O paciente que foi trazido de Brasília tinha o mesmo tipo sanguíneo e a mesma estatura física do doador e precisava do pulmão esquerdo. Quem conta esse caso é o cirurgião José Camargo, diretor do Centro de Transplantes de Órgão, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Por conta das denúncias sobre corrupção na rede de transplantes, O GLOBO ONLINE entrevistou Camargo para saber sobre a lisura da lista de espera para transplantes e o funcionamento do Centro de Transplantes de Porto Alegre, um dos maiores da América Latina. Em média, entre 550 e 600 transplantes são realizados anualmente na unidade. No ano passado, em todo o país, 4.734 operações foram informadas ao Registro Brasileiro de Transplantes, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). A denúncia do suposto esquema de fraude no Rio surpreendeu Camargo. Segundo o médico, o sistema de doação é íntegro e transparente e a idéia de compra de órgão é fantasiosa. Ele disse que casos de corrupção são difíceis não apenas pelas exigências clínicas, mas também pelo número de pessoas envolvidas no processo, desde o diagnóstico da morte encefálica até a comunicação às centrais de implante e a chegada ao paciente do órgão a ser implantado, e pelo tempo de duração dos órgãos e tecidos. Um fígado, por exemplo, após ser retirado do doador deve ser transplantado em cerca de oito horas. Ele disse ainda temer um reflexo no número de doadores no país ( Você é ou pretende ser doador? ):
- Muita gente vai morrer, porque esse tipo de denúncia tem um efeito devastador na consciência das pessoas.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
O GLOBO ONLINE - Como funciona a lista?
José Camargo - Existe a idéia de uma fila única, mas ela é formada por listas regionais, por conta do tempo máximo de duração do órgão até chegar ao paciente. No caso de transplante de pulmão, não pode ultrapassar de seis horas, caso contrário, o órgão não serve mais. Isso inviabiliza que um paciente de Porto Alegre, por exemplo, receba o pulmão de alguém de Fortaleza.
Quantos pacientes aguardam na fila de espera de transplante no Brasil?
Camargo - Estima-se que cerca de 60 mil. Se tivéssemos um terço de morte de causa de encefálica que ocorrem no país transformado em doação de órgão, não teríamos lista de espera. O que temos que fazer é sensibilizar a população para a doação. E sensibilizar a classe médica para que todos os casos de morte encefálica sejam comunicados. No Rio Grande do Sul, 72% das famílias doam os órgãos. É um índice europeu.

" Se tivéssemos um terço de morte de causa de encefálica que ocorrem no país transformado em doação de órgão, não teríamos lista de espera "

Como fogem de esquemas de corrupção?
Camargo - Fiquei surpreso com a notícia do Rio (operação Fura-Fila). A corrupção em doação de órgão é praticamente impossível pelo grande número de pessoas envolvidas. Há muitos intermediários. O técnico da secretaria que avisa o assistente social que chama o serviço da central para a comunicação sobre a morte cerebral e aí por diante. É um mecanismo muito íntegro e transparente.
Acha que a denúncia vai refletir no número de doações?
Camargo - Esses pacientes chegam para se inscrever em lista de espera com um histórico de décadas de maus-tratos nos atendimentos das unidades públicas. E há muita desinformação. O que acho grave nesse episódio é que vai respingar no Brasil inteiro e muita gente vai morrer, porque esse tipo de denúncia tem um efeito devastador na consciência das pessoas. A doação é um gesto de confiança. As pessoas ficam fragilizadas pela perda, porque perderam um ente querido. Quando há um estímulo positivo, como a doação de órgãos do guitarrista do Titãs Marcelo Fromer (atropelado por um motociclista em São Paulo, em 2001). Quando há uma denúncia como essa, o efeito é devastador. Espero que o Ministério Público tenha documentado a fundo e que se investigue exatamente o que aconteceu no Rio. Isso não é uma prática comum, porque as centrais brasileiras são muito transparentes.

" As centrais brasileiras são muito transparentes "

Como trabalham com a questão do órgão marginal (órgão em más condições)?
Camargo - Marginal é o órgão que está no limite da impossibilidade de ser usado. Às vezes, rejeitamos o órgão porque ele está comprometido. Às vezes, usamos um órgão menos adequado do que o desejado, porque o receptor está muito mal e ele não terá outra chance. Mas o paciente e a família precisam consentir, com a ciência de tratar-se de uma situação de alto risco.
Quanto tempo, em média, o paciente fica na fila, aguardando por um transplante?
Camargo - Depende do órgão. Normalmente ele espera entre seis e sete meses para receber um pulmão, por exemplo.
E no caso de ordem judicial para passar a fila?

" O tempo de espera na lista pode não ser o mais importante "

Camargo - Nunca passei por isso. Os casos emergenciais são colocados na frente, normalmente, por conta da mudança na Legislação (desde 2006, o sistema mudou e a fila foi reorganizada, com os pacientes em estado mais grave na frente dos demais). Um paciente com hepatite fulminante é colocado na frente ou ele morre. O tempo de espera na lista pode não ser o mais importante. Mas as gravidades são definidas usando parâmetros objetivos. São parâmetros clínicos, fisiológicos e laboratoriais, seguindo normas internacionais para fugir do risco de corrupção.
Pobres também têm acesso?
Camargo - A disponibilização do órgão é um procedimento do estado. A lista é única. Mesmo quando o convênio paga o transplante, o paciente está submetido ao estado. Temos muitas variáveis. Começa pelo tipo sangüíneo, passa pelo tamanho do órgão. A idéia de comprar um órgão é uma idéia fantasiosa de quem não tem noção de como é complexa a operação de quem vai receber o órgão. A maior parte dos transplantes é pago pelo SUS (Sistema Único de Saúde). A remuneração é precária. Se houver complicação, por exemplo, e o receptor tiver insuficiência renal ou respiratória, o pagamento do SUS não cobre o gasto do hospital. O cirurgião mais bem remunerado em um transplante de pulmão recebe em torno de R$ 1.500.

" A idéia de comprar um órgão é uma idéia fantasiosa de quem não tem noção de como é complexa a operação de quem vai receber o órgão "

Por que a o modelo implantado em Porto Alegre funciona?
Camargo - Temos uma equipe treinada para identificar precocemente os problemas e isso faz com que tenhamos resultados comparados aos melhores centros do mundo. Nos transplantes de pulmão, 83% dos nossos pacientes chegam com vida ao primeiro ano após a cirurgia.
Como o modelo pode ser utilizado em outras cidades?
Camargo - Com investimento em qualidade hospitalar. Se o hospital se qualificar para fazer transplante, investir em terapia intensiva, em enfermagem, em equipamentos, isso terá um efeito locomotiva. Vai agregando qualificação. Tudo tem um valor decisivo para o transplante. Recebemos pacientes de todos os lugares.
Existe troca de conhecimento com outros centros?
Camargo - Temos profissionais de vários lugares trabalhando aqui ou sendo treinados. O centro de Curitiba tem um sistema de captação de órgão muito ativo. Eles fazem todos os transplantes, menos o de pulmão. Estamos fazendo um tipo de parceria, para quando tiver um doador lá possamos buscar o órgão e os médicos de Curitiba para que eles acompanhem o nosso trabalho. A contrapartida é que eles nos confiam doadores.

Ver: "Adjetivações, especulações e excessos - desagravo ao Dr. José Camargo"

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