sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Entre a indignação e o cansaço

Foi com esse título que Sylvia Moretzsohn, professora de jornalismo da UFF, comentou o artigo de Helite Vaitsman sobre o caso do Dr. Joaquim para o Observatório da Imprensa.

Destacamos, abaixo, uma pequena parte da dissertação da professora Sylvia Moretzsohn sobre a relação entre a velocidade e o trabalho jornalístico. A dissertação é de 2000.

Perguntamos: A defesa da liberdade de imprensa, na verdade, não está servindo apenas para a permissividade e uma total acomodação ao que está acontecendo? Não estamos traindo o espírito da liberdade de imprensa, tratando-a como uma simples liberdade de mercado para publicações, no qual a concorrência, a velocidade, a audiência e a venda são os juízes? No final, se houver erro, culpem-se as fontes de sempre!

Será que a questão está no fato de que o valor das indenizações estão compensando esse procedimento? Será que os jornalistas gostariam de ser tratados como "casos de polícia" como foi o Dr. Joaquim Ribeiro Filho? Será que precisarão ser alvo de ações da Polícia Federal para que cumpram minimamente a ética profissional (quando não os seus próprios manuais de redação)? Seria pedir muito que entendam minimamente do que falam ou que tenham assessorias de apoio nas redações? E que não sejam assessorias de imprensa! Ou, que não sejam apenas assessorias de imprensa...

Vejam um pequeno trecho da dissertação da pesquisadora Sylvai Moretzsohn:

"Mais importante que perceber como o erro pode ser facilitado pela competição é ver como essa disputa favorece o alarme em vez do esclarecimento, como no exemplo a seguir:
Ela [a competição] às vezes nos obriga a divulgar as coisas apressadamente, obrigando-nos a desmenti-las posteriormente. Ela pode encorajar o erro em um lead, não justificado pelo resto da matéria, resultando em puro sensacionalismo. Lembro-me das manchetes que ocuparam toda a primeira página do New York Post durante o alarme nuclear de Three Mile Island em 1979. A primeira dizia: “Nuvem nuclear se espalha”. A segunda, no dia seguinte, era: “Vazamento escapa ao controle”. No terceiro dia, a manchete foi: “Corrida contra o desastre nuclear”. E no quarto: “Situação melhora” [245] .


Neuman, porém, não enxerga aí uma consequência lógica da rotina de competição: considera o caso um desvio, um “abuso”, um exemplo flagrante “de jornalismo barato, que explora o medo” - afinal, tratava-se de um jornal sensacionalista. O próprio Neuman, no mesmo caso, comportou-se de modo diverso:
Durante o episódio de Three Mile Island veio um boletim da UPI citando um porta-voz da Nuclear Regulatory Agency que teria dito: “existe o risco final de um derretimento”. Eu deveria ir ao ar, interrompendo a programação normal - fazendo o que se chama de interrupção da cadeia - e dar a notícia. Eu olhei para o boletim, decidi que não sabia qual era o seu significado e sugeri ao diretor de jornalismo da NBC que esperássemos. Ele concordou. (...) Depois de muitas dificuldades, conseguimos algumas informações sobre o significado de um risco final de derretimento. Significava muito menos do que se poderia ter pensado. Quando fui ao ar, estávamos em condições de dar a notícia em perspectiva. Era muito menos atemorizadora do que parecera a princípio. Mas, naturalmente, fomos a terceira emissora a divulgá-la [246] .

A prudência talvez tenha sido resultado da fonte originária da informação imprecisa e alarmista: um boletim da UPI, embora citando fonte oficial. Quando o contato com esse mesmo tipo de fonte é direto, a história muda:

Nós fomos criticados pela cobertura que fizemos do atentado contra Reagan porque divulgamos alguns dados incorretos e porque continuamos a transmitir apesar das informações serem relativamente escassas.

Dois pontos: nós tínhamos que continuar transmitindo. Alguém havia atirado no presidente. Algumas das pessoas que o cercavam tinham sido atingidas. Em tais circunstâncias, não se pode deixar de transmitir.

Mas então nós dissemos que o presidente não havia sido ferido. Isto provou-se ser um erro. O que fazer? A resposta é que esta informação veio da Casa Branca. Nós não a inventamos. Depois veio o anúncio de que James Brady, o secretário de imprensa da Casa Branca, havia morrido. Novamente, a primeira notícia veio de alguém da Casa Branca. Nós não tínhamos outra escolha a não ser divulgá-la [247]
.

Vários estudos já demonstraram o quanto as fontes oficiais mentem [248]. No entanto, o mais significativo aqui não é verificar que, apesar disso, e apesar do número de vezes que a história se repete, as fontes oficiais continuem a ser acreditadas sem mais questionamentos. O principal é entender que, sob pressão, a fonte é instada a dizer alguma coisa, qualquer coisa, para “alimentar o sistema”. Em consequência, tanto podem ocorrer erros (como aparentemente foi o caso no exemplo citado acima) como, o mais grave, a divulgação proposital de informações incorretas ou francamente falsas, exatamente porque as fontes conhecem as rotinas de produção e sabem que, nessas circunstâncias, o que for dito será veiculado.

A propósito, Schudson observa que, “quanto mais a mídia enfatiza o imediatismo das notícias, mais os jornalistas estão sujeitos à manipulação das fontes” [249] . Considerando que o imediatismo está incorporado às rotinas de produção, a sempre condenada subserviência dos jornalistas à palavra da autoridade não é simples de superar. Por isso, questionado a respeito, o repórter Caco Barcellos preferiu apontar o problema na própria estrutura competitiva dos meios de comunicação, mostrando como é difícil adotar coletivamente uma atitude crítica no cotidiano da profissão:

...eu não sei se isso [a subserviência] é consequência da pressão a que o repórter é submetido, a pressão industrial até, porque é complicado você duvidar sempre da polícia. Eu me sinto um privilegiado, eu posso duvidar, não que o outro não possa, mas porque eu tenho mais tempo para apurar. E nem todo repórter tem esse privilégio que eu tenho. O camarada pode sair da redação precisando fechar duas matérias. Ele vai duvidar de tudo que é delegado que cruzar na vida dele? Isso só vai derrubar a matéria. Pra mim é relativamente confortável falar: “Não, tem de duvidar sempre”. Mas eu tenho tempo pra duvidar, eu posso apurar. Se o teu chefe está lá cobrando, e você está começando na profissão - e hoje as redações estão cheias de profissionais inexperientes -, como “bancar” um chefe, dizer que não tem a matéria, se no dia seguinte o concorrente pode dar com todo o destaque aquilo que o delegado passou pra ele? Haja peito pra segurar essa barra. É complicado [250] .

Como e por que alguns repórteres conseguem prestígio a ponto de obter esse “privilégio” de poder trabalhar corretamente enquanto a maioria se desdobra em várias pautas por dia é um assunto que merece pesquisa específica e foge aos objetivos deste trabalho. Importa aqui o depoimento, que dá conta de uma realidade dura. Mas importa igualmente perceber que a subordinação à palavra da autoridade raramente é inocente: em geral a urgência surge como justificativa para isentar a imprensa de responsabilidade ou mesmo conivência na divulgação de notícias sem fundamento, atribuindo-se toda a responsabilidade à fonte, especialmente se oficial."

Ver:A velocidade como fetiche – o discurso jornalístico na era do "tempo real"
Sylvia Moretzsohn, Universidade Federal Fluminense

(tese de mestrado, 2000)

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