domingo, 10 de agosto de 2008

A vida jogada no lixo - José Anselmo e Guel Arraes

A vida jogada no lixo

José Almino e Guel Arraes


Como todos hoje sabem, o médico Joaquim Ribeiro Filho foi preso recentemente, e depois libertado por decisão judicial, acusado de haver desrespeitado a fila de transplantes de fígado. Carlos Augusto Arraes, nosso irmão, tem sido citado como sendo um dos três que teriam se beneficiado de transplantes irregulares. Decidimos escrever este artigo para, com toda a honestidade, esclarecer o episódio. Acreditamos que, agindo assim, também estaremos contribuindo para o debate de uma questão literalmente vital para milhares de brasileiros.

O transplante foi realizado com um fígado que seria descartado: o doador encontrava-se em Minas Gerais onde a operação para a retirada do órgão naquele dia e hora não poderia ser efetivada por causa de uma greve no Hospital da Universidade Federal de Minas Gerais. Seguindo a regulamentação vigente, a Central de Transplantes de Brasília foi notificada; e, também de acordo com a norma, notificou a região geográfica mais próxima e que dispunha de equipe de transplante, no caso, o Rio de Janeiro. Aqui, porém, as unidades hospitalares relevantes se mostraram impossibilitadas de assegurar o traslado do órgão. Vale lembrar: o transporte de órgãos, quando possível, é assegurado pelo serviço público, mas apenas por vôo de carreira. Naquele 17 de julho de 2007, contudo, este expediente tornara-se impraticável, por causa do acidente da TAM em São Paulo, que havia paralisado os vôos em todo o país.

No momento em que o Serviço Nacional de Transplante constatou que não haveria transporte para trazer o órgão ao Rio e que este seria descartado, e somente neste momento, nós decidimos fretar um avião, que foi a Minas Gerais, com equipe médica, recolher o fígado, àquela altura prestes a ser encaminhado para o lixo, já que sua vida útil é de apenas algumas horas. Tivemos assim a imensa alegria de ver o nosso irmão operado e em franca recuperação.

Esta não é uma circunstância excepcional. Cerca de 400 fígados doados se perdem todo ano no Brasil por falta de transporte. Raramente os pacientes que estão na fila tomam conhecimento deste fato em momento oportuno e, provavelmente também são muito poucos os que dispõem de recursos para assegurar o transporte. No entanto, o nosso caso não é o único: o mesmo aconteceu, por exemplo, com o ator Norton Nascimento em 2003, fato amplamente noticiado na imprensa. Em toda a discussão sobre a fila de transplantes, essa questão deve ser seriamente enfrentada: como criar mecanismos mais ágeis que evitem o desperdício de órgãos, beneficiando a todos, indistintamente?

A cirurgia de nosso irmão foi ainda realizada em cumprimento a decisão da Justiça, que deu prioridade a seu caso, seguindo, aliás, precedentes judiciais. Consta desse documento que, "em razão da calamitosa situação em que se encontra o sistema brasileiro de transplante de órgãos" e "diante da fragilidade da saúde do autor que não lhe permite aguardar o longo calvário para o recebimento de um órgão e do iminente risco de morte, não restou alternativa senão a de socorrer-se ao Poder Judiciário para que este órgão lhe garanta o mais profundo direito fundamental: o direito a vida!"

O caso pode ser resumido da seguinte maneira: Carlos Augusto dispunha de uma medida judicial que lhe dava prioridade e utilizou na sua cirurgia um órgão que seria descartado. Fígado algum desviado, já que o que foi transplantado iria fatalmente para o lixo. Lembramos também que, por força da liminar, o nosso irmão colocava-se em primeiro lugar na fila de transplante.

Portanto, acreditamos ser descabida qualquer insinuação de que houve quebra da legalidade ou da moralidade, seja da nossa parte ou da parte do médico Joaquim Ribeiro Filho. Quanto a este último, ele se encontra numa situação propriamente absurda: obrigado por uma liminar da Justiça a operar nosso irmão e, ao mesmo tempo, acusado pela Polícia Federal de ter realizado esta mesma cirurgia. Em meio à confusão de boatos, insinuações, e acusações insensatas que acompanharam este caso, chegou-se ao cúmulo de taxar de suborno a quantia de 90 mil reais paga por nós à equipe inteira do Dr Joaquim pela cirurgia e mais de um mês de tratamento que a antecedeu. Não se deram sequer ao trabalho de verificar que se trata de um custo inteiramente compatível com o praticado em outros hospitais particulares pelos mesmos serviços. É preciso esclarecer que a legislação obviamente não obriga o paciente a realizar o transplante em unidades públicas.

Resolvemos vir a público também porque acreditamos dever uma satisfação à família do doador do órgão que salvou a vida de nosso irmão. Normalmente a doação é anônima, a família doadora e o paciente beneficiado não têm conhecimento um do outro. Como o nosso caso recebeu bastante publicidade, é bem possível que esta família já saiba a quem a sua doação foi destinada. Jamais esqueceremos a sua extrema generosidade, o que nos obriga a este esclarecimento. E muito mais ainda: a nossa eterna gratidão.

JOSÉ ALMINO (Diretor da Fundacão Casa de Rui Barbosa ) GUEL ARRAES (diretor de cinema e TV )
Carta publicado em O Globo online 09/08/2008

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