segunda-feira, 6 de abril de 2009

Vamos ouvir o Dr. Paul McMaster: quem sabe, assim, a mídia passe a entender o que está em jogo em transplantes

A imprensa poderia verificar também como várias pessoas que estavam desenganadas conseguiram sobreviver na mão de cirurgiões competentes. E mostrar que selecionar a vida que vai ser salva não é um procedimento burocrático, mas envolve, também, um profundo apego à vida, condições de captação decentes e habilidade do profissional. Como se vê: essas não necessariamente as prioridades dos burocratas.

Para fazer a fila andar melhor
Lailson Santos
- Revista Veja (08/04)

Pioneirismo: O cirurgião inglês Paul McMaster é um dos principais responsáveis pelos avanços nos transplantes de fígado

O cirurgião inglês Paul McMaster é um dos pioneiros dos transplantes hepáticos, o mais complexo de todos os transplantes. Em 1980, juntamente com o médico Elwyn Elias, ele fundou a Unidade de Fígado da Universidade de Birmingham, no interior da Inglaterra. De lá para cá, o centro transformou-se num difusor de inovações. É de McMaster e sua equipe, por exemplo, a descoberta de que algumas pessoas podem, sim, beneficiar-se de um fígado não inteiramente perfeito. Com isso, as filas passaram a andar mais rapidamente e muitas vidas foram salvas. Hoje, aos 65 anos, McMaster atua na organização humanitária Médicos sem Fronteiras, coordenando equipes em áreas de conflito na África. Durante sua última visita ao Brasil, McMaster falou à repórter Naiara Magalhães.

Órgãos não perfeitos
No começo da década de 90, minha equipe em Birmingham percebeu que muitos órgãos antes considerados impróprios para o transplante poderiam salvar vidas. Pouquíssimos órgãos são "perfeitos", mas muitos são adequados e podem ser usados de maneira bem-sucedida em alguns pacientes. Por exemplo: uma pessoa que tem o sangue infectado pelo vírus da hepatite C, mas não tem a doença instalada no fígado, pode ser um bom doador para um paciente com cirrose hepática também causada pelo vírus da hepatite C. Ainda que esse receptor contamine o fígado transplantado, ele provavelmente viverá muito bem entre dez e vinte anos sem comprometer o funcionamento do novo órgão. Com essa mudança de abordagem, foi possível aumentar o número de pacientes salvos. Há vinte anos, de 50% a 70% das pessoas à espera de um transplante de fígado, em todo o mundo, morriam antes ser atendidas. Hoje, esse índice fica em torno de 15%.

Um em dois
A maior inovação dos últimos anos, no campo do transplante de fígado, foi o desenvolvimento da técnica de dividir um órgão para beneficiar duas pessoas: em geral, a menor parte vai para uma criança e a maior fica com um adulto. É um procedimento difícil de ser realizado, mas uma ótima maneira de aumentar o número de operados. Os avanços na área cirúrgica permitiram, ainda, diminuir o sofrimento das pessoas que passam por um transplante de fígado. Há vinte anos, essa operação durava de dezessete a 24 horas. Atualmente, leva cinco horas, em média. O tempo de recuperação pós-operatória também caiu pela metade – de trinta dias para duas semanas ou até dez dias, em alguns casos.

A cura
A maioria das pessoas que passam por um transplante de fígado consegue, hoje, ter uma vida normal. Se o paciente ultrapassar o primeiro ano, a chance de ele durar os próximos vinte, e com qualidade de vida, é maior do que em qualquer outro transplante. Com moderação, ele pode fazer tudo – até tomar uma taça de vinho no almoço. Uma das maiores contribuições para a melhoria da qualidade de vida dos transplantados ocorreu a partir do momento em que otimizamos o uso dos medicamentos antirrejeição, os imunossupressores. Tais medicamentos são muito agressivos e costumam causar problemas graves, como insuficiência renal, hipertensão, diabetes e colesterol alto. Minha equipe em Birmingham começou a usar esses remédios em menor quantidade, de forma a devolver às pessoas uma existência de fato normal. Nós diminuímos as dosagens ao mínimo suficiente para evitar a rejeição e, ao mesmo tempo, reduzir seus efeitos colaterais. De 15% a 25% dos pacientes, especialmente os mais idosos, ainda sofrem com os efeitos da medicação. Mas o mais importante é que, para a maioria das pessoas, o transplante de fígado representa a cura total.

Informações preciosas
O maior gargalo na área dos transplantes de fígado ainda é o número de doadores. Os países com as melhores taxas de pessoas salvas por esse tipo de cirurgia – a Espanha, em primeiro lugar, além de Inglaterra, França e Bélgica – são aqueles que investiram em ações capilares para aumentar o número de doações. Uma das estratégias mais eficazes é criar uma rede de coordenadores de transplantes em todo o país. Esses profissionais monitoram os hospitais para identificar os potenciais doadores, fazem o contato (sempre delicado) com as famílias, explicando que o diagnóstico de morte encefálica é absolutamente preciso e esclarecendo os benefícios da doação de órgãos. Outra estratégia fundamental para incentivar o aumento das doações é informar o maior número possível de pessoas sobre como esse tipo de cirurgia é capaz de salvar milhares de vidas a cada ano. A população tem de ter acesso a todos os dados do trabalho feito pelos médicos. Na Inglaterra, por exemplo, essas informações estão na internet. Dessa forma, as pessoas não precisam acreditar apenas num discurso edificante. Elas têm a oportunidade de conferir os resultados e tirar suas próprias conclusões.

Os mais doentes, primeiro
Administrar a fila do transplante também é fundamental para evitar desperdícios e salvar vidas. É crucial que o paciente mais necessitado receba o órgão primeiro. Já adotado nos Estados Unidos e em boa parte da Europa, esse modelo começa a ser posto em prática por um número crescente de países. No Brasil, isso ocorre desde 2006. Até então, vigorava o sistema da lista cronológica, em que a prioridade era dada a quem estava na lista havia mais tempo. Sob a vigência dos critérios antigos, um paciente muito doente morria antes de chegar a sua vez, enquanto outro, em estado menos grave, era beneficiado. Além disso, o critério cronológico produzia listas muito maiores. Os pacientes com doenças hepáticas costumavam entrar na fila antes de precisar realmente do transplante, apenas por saber que o tempo de espera seria muito longo.

Uma decisão difícil
Há situações em que a pessoa está tão doente que receber um fígado novo não vai ajudá-la. Nesses casos, o melhor é não fazer o transplante. Para receber um órgão doado, o paciente tem de ter mais de 80% de chance de sobreviver por mais de cinco anos com o transplante e 70% de probabilidade de morrer em um ou dois anos se não passar pela cirurgia. Esse é um dos julgamentos mais difíceis que o médico tem de fazer, mas é essencial: se o transplante não pode ajudar uma pessoa, é melhor usar o órgão para melhorar a vida de outra.

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