quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Pela doação: Cleyde Prado Maia e família

Talvez, em algum momento, os jornais vão procurar saber porque o Banco de Olhos está fechado no Rio de Janeiro? Talvez, em algum momento, queiram saber como estão as condições financeiras do Hospital do Fundão? Talvez, queiram saber o que falta para melhoria na captação de órgão no Rio de Janeiro e o tipo de gestão que era feito no Rio Transplante? Sim, talvez, em algum momento...
Talvez, em algum momento, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal...

09/09/2008 01:27:00

Doação: rins de Cleyde Prado Maia salvam duas vidas

Carol Medeiros

O cozinheiro Marcelino, do Engenho de Dentro, e a doméstica Eloízia, de Duque de Caxias, receberam os rins de Cleyde.
O último ato de amor de uma mulher que transformou sua dor em luta acabou com anos de angústia e espera de duas famílias que multiplicavam seus dias na fila do transplante. Doentes renais crônicos, um cozinheiro do Engenho de Dentro e uma empregada doméstica de Duque de Caxias receberam, sábado, os rins de Cleyde Prado Maia, morta sexta-feira aos 51 anos, após um acidente vascular cerebral. Mais do que a cura de uma doença, para Marcelino Rodrigues Rocha, 48, e Eloízia Matos de Andrade, 53, a doação dos órgãos é a chance de voltar a ter uma vida normal.

Moradora da Vila São Luís, bairro humilde de Caxias, Eloízia divide a casa de três cômodos com o marido e o caçula dos quatro filhos. Desde 2000, quando sofreu a primeira das muitas crises renais, está afastada do trabalho. O benefício, de um salário mínimo, não é suficiente para sustentar a família. O marido, Alcimar Augusto, 56, ajuda como pode, catando latas pela cidade. As seções de hemodiálise três vezes por semana deixavam Eloízia fraca e indisposta. Muitas vezes ela chorava.

‘VIDA NORMAL’

“Foram oito anos muito difíceis”, admite a doméstica, que teve medo de morrer ao receber, sexta-feira, a notícia de que enfim faria o transplante. “Agora só penso em ficar boa. Somos pobres, e a primeira coisa que farei é voltar a trabalhar para ajudar meu marido. Eu trabalhava em casa de família, mas fiquei doente e ninguém me queria assim”, lamentou. “É uma pena que a minha alegria tenha que ser a tristeza de alguém. Peço a Jesus que dê força à família da Cleyde”, disse ontem, no primeiro dia de visitas no Hospital Geral de Bonsucesso.

Para Marcelino, o gesto de Cleyde vai devolver a alegria com as pequenas coisas. Há 11 anos, o pai de cinco meninos teve que abrir mão de brincar com os filhos, ir ao Maracanã e até de trabalhar para se adaptar à rotina de um doente renal crônico. “Ele ficou deprimido, sentia-se inválido por não poder trabalhar. Quando recebeu a notícia, nem conseguiu dormir de ansiedade. Hoje está feliz porque pode ter vida normal de novo”, contou a mulher de Marcelino, Deliciana de Lima Rocha, 48.

Cleyde era mãe de Gabriela, menina de 14 anos que em 2003 morreu vítima de uma bala perdida na Tijuca. (Colaborou Natalia von Korsch)

EMPRESÁRIO RECEBEU FÍGADO

O outro órgão de Cleyde já transplantado, o fígado, foi recebido pelo empresário Guilherme Studart, 50 anos, no Hospital do Fundão. A mulher dele, Elaine Cunha, deixou mensagem no Orkut de Cleyde agradecendo à família pelo gesto de bondade. Para Celyse do Prado Maia Maciel, 52 anos, irmã de Cleyde, essas manifestações dão força para superar a perda. “É gratificante saber que pessoas que você nunca viu mudaram suas vidas. Que eles tenham a força de vida dela. Agora há um elo entre nós. Isso transforma esse momento de dor em imensa satisfação. É sublime”.

Sobre as mensagens de agradecimento pela decisão de doar os órgãos, Celyse é categórica: o mérito é todo da irmã. “É uma felicidade ter assinado a autorização. Não foi a família, foi a Cleyde que resolveu doar os órgãos. Era seu desejo, e eu tenho orgulho de ser irmã de uma pessoa generosa como ela”.

No HGB, Marcelino precisou ser operado novamente domingo, após pequena complicação pós-cirúrgica.

As córneas não foram aproveitadas

Apesar da vontade de Cleyde e da família, as córneas da mãe de Gabriela não puderam ser aproveitadas, porque o Banco de Olhos está fechado desde o dia 8 de julho. “É um absurdo ter 3 mil pessoas à espera de uma córnea e o transplante não poder acontecer simplesmente porque o órgão não tem verba do governo”, desabafou Celyse.

Há dois meses, outra morte que causou comoção no Brasil resultou em nova vida para pessoas que aguardavam um transplante. As córneas do menino João Roberto Amorim Soares, morto aos 3 anos por PMs após o carro de sua mãe ter sido confundido com o de bandidos, foram as últimas recebidas pelo Banco de Olhos. As meninas Sueny Kellen Oliveira da Silva, 13, e Lariza Santos, 8, passaram a enxergar.

DEPOIMENTOS

‘ELA TROUXE PAZ PARA NÓS’

“O que ela fez foi corajoso e um verdadeiro ato de amor. Salvou duas vidas de uma só vez. Sei que a família dela está sofrendo com a perda, mas, de certa maneira, a dor deles pode ser aliviada por saber que a Cleyde salvou a vida de outras pessoas. Ela, que não cansou de pedir paz, trouxe paz para nossa família com a sua decisão. Isso não tem preço e nós nunca esqueceremos do que fez por nós.”

Kátia Moreira dos Santos, 36, sobrinha de Eloízia Andrade


‘ABRIU PORTAS PARA NOVAS VIDAS’

“Ela tinha motivos para se revoltar contra tudo e todos, contra o mundo. Mas, ao contrário, não se contentou em agir heroicamente enquanto estava viva e teve uma atitude nobre e heróica antes de morrer. Transformou seu luto em luta por uma cidade melhor enquanto estava viva. E, com sua morte, a Cleyde abriu as portas para novas vidas. Era uma pessoa admirável, que pensava sempre no outro.”

Magno de Lima S. Rocha, 23, filho de Marcelino

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