sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Fígados "marginais" ou "Fígados marginais" (sobre uma matéria da revista "Época" de 1998)

TRANSPLANTES
Médicos fazem cirurgias com fígados rejeitados - Lito Cavalcanti
Revista Época 02/11/1998
http://epoca.globo.com/edic/19981102/ciencia6.htm

Solução alternativa

Falta de doadores leva médicos a fazer cirurgias com fígados antes rejeitados

A primeira cirurgia foi feita há 35 anos nos Estados Unidos e em 1968 no Brasil. Desde então, o transplante de fígado tornou-se um tratamento delicado, mas com resultados altamente positivos. As estatísticas revelam que 90% dos transplantados vivem pelo menos um ano, 85% chegam a cinco anos de sobrevivência e a maioria morre de outros males não causados pelo problema do fígado. Sem o transplante, 90% dos doentes com cirrose hepática morreriam em menos de 18 meses. Mas, se a medicina consegue resultados tão bons com essa cirurgia, a falta de órgãos para transplantes ainda causa um número assustador de óbitos no país.

O número de doações se mantém no mesmo patamar há vários anos (no Brasil, deve ficar em torno de 200 neste ano), mas a lista de espera por um fígado novo cresce - e força a criação de alternativas que possibilitem um aumento dos transplantes. Algumas dessas opções já estão em uso, como o aproveitamento de órgãos antes descartados por falta de condições clínicas ideais, os chamados fígados marginais. Retirados de portadores de vírus infecciosos ou expostos a situações prejudiciais a seu bom funcionamento, eles podem ser enxertados em certos pacientes em estado desesperador, "sempre ponderando os riscos e benefícios ao receptor", enfatiza o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto, professor da Faculdade de Medicina da PUC de Sorocaba, interior de São Paulo. "Quem tem câncer restrito ao fígado, por exemplo, não pode ficar esperando um órgão em condições ideais, ele precisa de um que possa oferecer oportunidade de tratamento, mesmo que não esteja perfeito."

É o caso do ex-ferramenteiro Benito Coppini, de 60 anos. Ele contraiu hepatite C, que deu origem ao câncer. Era o último da fila de candidatos a transplante, mas seu estado era desesperador. Os médicos calculavam que ele teria 15 dias de vida, mas a fila por um órgão perfeito duraria mais de um ano. No começo de janeiro, no entanto, Benito viu-se diante da opção de fazer um transplante com um fígado marginal, rejeitado por várias equipes médicas por conter o vírus da hepatite C. Ele aceitou e submeteu-se à cirurgia. Hoje, Benito leva vida normal. Sumiram as hemorragias, ele come de tudo, até mesmo alimentos com gordura. Anda 8 quilômetros todos os dias. "Quando o médico disse que tinha um fígado marginal, fiquei meio indeciso, trocar meu fígado por outro ruim, mas decidi aceitar", recorda. "Não tinha jeito."

O trabalho com fígados marginais nasceu em Birmingham, na Inglaterra, há mais de uma década. "Mas lá há um sistema de captação de órgãos fantástico e um dos índices mais baixos do mundo de fígados que não funcionam, já que o sistema básico de saúde é bem desenvolvido", afirma o cirurgião Sérgio Mies, um dos responsáveis pela Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo, com 150 pacientes na fila de espera. "No Brasil, faz-se um transplante de fígado a cada quatro dias, incluindo os marginais e os bons. Quando um órgão não é compatível, precisamos arranjar outro em prazo muito curto, pois a possibilidade de estoque não existe. Um fígado só pode ser preservado por 12 a 15 horas."

Por esses motivos, os médicos brasileiros costumam fazer mais cirurgias com os chamados fígados marginais, apesar de considerarem o transplante sempre um risco. "Se o receptor estiver em situação crítica, o fígado marginal pode valer a pena, mas se tiver condições é melhor esperar", afirma Mies. O advogado e publicitário Walter Ribeiro dos Santos, de 74 anos, não podia esperar. Walter contraiu cirrose hepática e seu fígado só tinha 20% da capacidade original. Além disso, os exames mostraram uma obstrução entre o fígado e a vesícula, que foi extraída. Não bastou. Sem o transplante, ele morreria. O jeito foi aceitar a doação de um órgão de um portador do vírus da hepatite B. "No dia da operação, os médicos me pediram para assinar um termo de concordância que era um verdadeiro atestado de óbito, tantas as precauções que eles estavam tomando", recorda. "Oito dias depois da internação, estava de volta à vida."

São vários os motivos pelos quais o fígado de um doador é classificado como marginal. O portador pode ter passado por paradas cardíacas, ter tomado antibióticos contra infecção pulmonar, permanecido em unidades de tratamento intensivo dos hospitais por mais de uma semana, ter tido pressão arterial muito baixa ou ter sido infeccionado pelos vírus das hepatites B e C ou pelo HIV. Também se enquadram nessa categoria os fígados de pessoas que apresentavam alto índice de sódio ou de gordura.

O militar da reserva João Baptista Pereira, de 64 anos, por exemplo, depois de ficar um ano na fila de espera, nem sabe o problema que havia no fígado que recebeu em regime de urgência. Só sabe que hoje está bem de saúde. "Deus operou um milagre em mim", afirma.

Milagre ou não, os médicos concordam em um ponto. Embora as chances de sobrevivência aumentem com o transplante dos fígados marginais, o ideal seria ter um sistema de captação de órgãos eficiente. A lista única foi criada para evitar que aqueles que têm cobertura de planos de saúde ou podem enfrentar gastos de cerca de R$ 60 mil por transplantes em hospitais particulares passem na frente de quem tem de recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS). "Há uma média de 30 mortes violentas por dia numa cidade como São Paulo, o que em tese cobriria nossas necessidades", afirma Luiz Augusto Pereira da Costa, um dos responsáveis pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado. Mas não é o que acontece. "O transplante de fígados marginais é eticamente justificável em países como o Brasil, onde há carência de doadores", constata o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto. "Atualmente, quem está na lista em busca de um doador tem apenas um ano e meio de vida e pelo menos a metade não resistirá à espera do transplante."

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