31.12.2007 - JORNAL NACIONAL
Uma tragédia em nome da lei
Neste 31 de dezembro, enquanto milhões de brasileiros faziam planos para a noite de Réveillon e para o ano novo, uma família do Rio de Janeiro experimentava duas sensações extremas - e opostas. Primeiro, uma alegria imensa. Depois, uma frustração ainda maior. O repórter Paulo Renato Soares conta uma história de vida e de morte; de solidariedade e de insensatez.
Era pra ser o melhor Réveillon da vida de Jânia Gomes. Ela espera por um transplante de fígado há quatro anos. A esperança de vida nova veio ontem com um telefonema do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teria localizado um órgão para ela.
“Eu fiquei ansiosa”, conta ela.
O doador foi uma criança de seis anos, de São Paulo, que teve morte cerebral. Os rins foram para pacientes paulistas. O fígado estava a espera de uma pessoa de no máximo 40 quilos.
Era o caso de Jânia. Mas hoje de manhã outro telefonema do hospital. Dessa vez para pôr fim ao sonho de uma recuperação. A paciente nem chegou a se internar para receber o novo órgão. O fígado que salvaria a vida dela nem chegou a sair de São Paulo.
O Brasil tem 7.036 pacientes na fila do transplante de fígado. Seguindo critérios que levam em conta urgência e compatibilidade entre doador e paciente, a central nacional fez uma triagem para indicar quem deveria receber o órgão.
O primeiro que teria direito ao transplante também era um paciente do hospital do Rio. Mas o número 26 da fila foi descartado porque era pesado demais pra receber o fígado de uma criança.
O hospital indicou a segunda opção: a Dona Jânia, número 253 na lista de espera. Mas segundo a central regional do Rio, havia um outro paciente que se encaixava no perfil. O número 80.
A indicação não foi aceita pelo próprio hospital porque, de acordo com os médicos, os exames desse paciente não estavam em dia.
A central do Rio, então, negou autorização do transplante para Dona Jânia. A coordenadora da central disse que a equipe médica do hospital já está sendo investigada pelo SUS e pelo Ministério Público por supostas irregularidades na escolha de pacientes que têm prioridade. E que não tinha informações suficientes para garantir que a fila estava sendo respeitada.
“Nós temos que seguir a lista de espera a fim de que todos os pacientes independente se são ricos, pobres, anônimos ou famosos possam receber um transplante com transparência”, argumenta Ellen Barroso, coordenadora da central de transplantes do Rio de Janeiro.
O médico disse que o hospital defende as investigações e lamenta a decisão.
“É uma infelicidade, porque o fígado foi jogado fora e era uma chance única dessa paciente ser transplantada. E não vejo nenhum motivo pra ter esse tipo de desconfiança da central”, responde Eduardo Fernandes, médico responsável pelo transplante.
O fígado foi para o lixo pouco depois das 3h da tarde de hoje. Dona Jânia, que vive num bairro pobre da Baixada Fluminense, não entendeu bem o que aconteceu. Mas ainda acredita que vai receber um fígado novo para se livrar dos remédios e da transfusão de sangue pelo menos uma vez por mês.
“Eu queria estar transplantada antes... Mas não deu...”, lamenta Jânia.
O subsecretário jurídico da Secretaria de Saúde do estado do Rio, Pedro Di Masi, disse que uma auditoria vai apurar de quem foi a responsabilidade pelo fracasso do transplante. O coordenador do Sistema Nacional de Transplantes, Abrahão Salomão, afirmou que também vai tentar esclarecer o que ocorreu. Só no Rio, além da Dona Jânia, outras 1.194 pessoas esperam por um fígado.
O jornal "O Dia" que, agora, apresenta apenas a versão dos acusadores, referiu-se assim ao trabalho da equipe do Dr. Joaquim Ribeiro.
01/01/2008 02:00:00
Burocracia joga no lixo chance de salvar vida
Fígado vai para lixeira por ordem da Central Estadual de Transplantes, apesar de paciente necessitada ter sido localizada na Baixada
Rio - Com cirrose hepática há mais de três anos, a dona-de-casa Jania Lúcia Gomes, 41 anos, passou a madrugada de ontem acreditando que se livraria do risco de morrer, além das dores e dos enjôos diários. Antes de dormir, recebeu ligação do Hospital do Fundão, onde faz tratamento, avisando que havia um fígado compatível e que ela finalmente seria transplantada. De manhã, ela soube que a Central Estadual de Transplantes não havia permitido a cirurgia. E que o órgão captado em São Paulo seria jogado no lixo.
“Não tenho nem palavras para descrever como estou me sentindo. Tinha ficado tão feliz com a primeira notícia”, disse Jania Lúcia, sem entender a razão do cancelamento da cirurgia. Ela é a paciente número 253 da lista de espera por um fígado. Ao todo, são cerca de 1190 pacientes no Rio. Mas como o órgão era de criança de 6 anos, só serviria para alguém com até 45 quilos.
O primeiro paciente com essa característica era o de número 80, mas ele não estava com os exames atualizados e, por isso, operá-lo representaria grande risco. Por essa razão, Jania, que pesa 44 quilos, seria a paciente mais indicada a receber o órgão, segundo o cirurgião-transplantador Eduardo Fernandes, que foi a São Paulo fazer a captação.
Coordenadora da Central Estadual de Transplantes, Ellen Barroso diz que não permitiu que o órgão fosse implantado em Jania porque a Central poderia ser acusada de “furar a fila”.
“Não poderíamos usar o órgão em ninguém, já que havia um paciente compatível na frente. Foi um erro do hospital tê-lo colocado na lista, já que não está pronto para a cirurgia. Como o nome dele estava lá, eu não podia pular a vez dele ou estaria infringindo a lei. Amanhã, esse paciente poderia desconhecer o fato de não estar preparado e processar a Central”, disse Ellen.
A situação revoltou o médico Eduardo Fernandes, que foi informado pela Central Estadual às 19h de ontem sobre a existência de um fígado disponível. “Ela (Ellen) disse que o orgão deveria ser jogado no lixo, já que não poderia ser implantado no primeiro compatível da lista. Isso é um absurdo. É uma vida que poderíamos ter salvo. A equipe ficou revoltada.
Quando a Central não permitiu o implante foi como se dessem uma facada no meu coração. A paciente é uma pessoa pobre, que mora na periferia. Quando vai ter a chance de receber outro órgão?”.
Diretor do Sistama Nacional de Transplantes, o médico Abraão Salomão disse que depois de recusado no Rio o fígado ainda foi oferecido a outros estados, mas acabou sendo descartado.
“Acho isso estranhíssimo: desprezar um órgão porque não serviu para um determinado paciente. Se o número 80 não estava pronto para o transplante, isso não exclui o 253 de receber o órgão. Toda lista tem que ser verificada até o fim”, disse, acrescentando que não tinha a informação de que havia um segundo paciente compatível no Rio. “O jurídico do Ministério da Saúde foi acionado para orientar a Central”.
EVANGÉLICA PASSOU MADRUGADA SE PREPARANDO PARA CIRURGIA
Moradora de Belford Roxo, na Baixada, Jania Lúcia Gomes, 41 anos, estava na igreja no domingo à noite quando uma de suas filhas chegou com a notícia de que ela seria transplantada na manhã seguinte. Evangélica, Jania passou parte da madrugada se preparando e arrumando a bagagem que levaria para o Hospital do Fundão.
“Eu cheguei a colocar camisolas, documentos e os exames na mala. Foi difícil conseguir dormir de tanta ansiedade. O médico tinha avisado que eu deveria esperar um telefonema de manhã e que depois disso que tinha que estar no hospital em duas horas”, conta ela, que está na fila de transplantes desde 2004.
Jania agora luta para não perder a esperança. “Fiquei muito triste quando soube que não faria o transplante, mas se for a vontade de Deus, eu vou conseguir outro. Tenho que esperar, até quando eu não sei”, disse, sem conter o choro. Casada, mãe de dois filhos, Jania não tem plano de saúde. “Eu não poderia pagar por um tratamento. Mas faço tudo certinho lá no Fundão. Sou pobre. Já sofri muito e achei que teria uma chance”, conta ela, que desenvolveu cirrose hepática devido às constantes transfusões de sangue que recebe desde os 18 anos, devido a uma anemia falsiforme.
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